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quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O velho truque

 

A mentira vitoriosa não é aquela que prescinde ou abandona a verdade, mas ao contrário é aquela que traz consigo a verdade bem ao seu lado, escravizada, servindo-se dela para os seus propósitos de engano e erro. Assim, a mentira não possui uma relação lógica de contradição com a verdade, pois a oposição de contrariedade entre elas pode expressar uma relação que lembra a dialética hegeliana em que o convívio dos contrários é plenamente possível, enquanto tese e antítese, onde a conclusão, ou seja, a síntese um misto de mentira e verdade, mantém vestígios de ambos o que favorece a mentira que, ao contrário da verdade, não é exclusiva admitindo com gosto as mais diversas contradições.

No Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo esse embate entre verdade e mentira é muito claro e podemos recorrer a duas passagens para entendê-lo. A primeira é a descrição das tentações de Jesus Cristo no deserto feita nos evangelhos sinóticos. O tentador, um exímio conhecedor das Escrituras, que expressam verdades imemoriais, utiliza tais conhecimentos para desviar Nosso Senhor. Era verdade que Jesus Cristo poderia transformar as pedras em pão, mas era ainda mais verdadeiro que o homem não vive só de pão, ou seja, da matéria, da carne e que o usufruto lícito desses bens é subordinado ao que há de mais excelente, que é a vida espiritual cujo alimento é a própria Palavra, em última instância o Verbo Divino.  

Com essa primeira passagem citada podemos perceber que um dos marcos distintivos do que é mentiroso do que é verdadeiro encontra-se na orientação, na ordem, onde a verdade leva ao Bem que é o próprio Deus, enquanto a mentira leva ao mal, ao demônio.

A outra passagem também traz à tona o truque do tentador, mas dessa vez na boca dos fariseus e escribas que também eram exímios conhecedores das Escrituras, bem como começavam a conversa trazendo verdades. Tal passagem pode também ser encontrada nos evangelhos sinóticos e é famosa por ter se tornado um famoso provérbio: “Dai a César o que é de César...”. Nela os fariseus e seus aliados utilizam uma técnica comum aos mentirosos, a técnica da bajulação que alimenta o ego e desvia o foco. Nosso Senhor não apenas não caiu no truque, como ciente das intenções de seus inquisidores os deixou desconcertados.

E o eco dessa mentira ou pelo menos de suas artimanhas reverbera até hoje. Expliquemos: os fariseus elogiavam a capacidade de Jesus Cristo de não dar preferência às pessoas por sua aparência, mas queriam pô-lo à prova. E a resposta foi no sentido de ordenar as coisas, ou seja, coloca-las em seu devido lugar, afinal o que é de César deveria ser ordenado a César representando o poder temporal ou mundano e o que é de Deus deve ser ordenado a Deus. A astúcia de recorrer primeiro à tolerância, à aceitação das pessoas para depois aplicar a mesma tolerância aos atos, aos pecados e desvirtuar a tolerância mesma, como podemos ver não é novidade hodierna.

E se hoje o velho truque da bajulação permanece e querem nos desorientar utilizando as palavras do próprio Cristo devemos responder como Ele mesmo respondeu colocando as coisas em seus lugares e não as relativizando por respeito humano. Assim, é muito comum ouvirmos verdades como o “não julgueis” sendo desvirtuadas para justificar as práticas mais contrárias ao plano divino, o que, como nas passagens evangélicas citadas, mostra que a mentira pode instrumentalizar a verdade com seus vis propósitos.

Em casos assim devemos proceder como Nosso Senhor, com inteligência e amor à Verdade, restabelecendo a ordem, afirmando que o que é de Deus dista do que é mundano, sem medo de indicar a hipocrisia, inclusive a nossa, que não poucas vezes acompanha a mentira. Em suma: devemos buscar sempre as coisas do alto e assim servir à Verdade doa a quem doer, obviamente com a suavidade e a caridade aprendidas do próprio Jesus Cristo que se multiplicou no exemplo dos santos.