Em minha adolescência, principalmente quando estava no Ensino Médio, encantei-me com os belos ideais socialistas de uma sociedade sem desigualdades. Para consolidar essa visão contribuíram sobremaneira alguns professores e a TdL (teologia da libertação) que era e continua sendo muito influente na Arquidiocese de Belo Horizonte onde nasci e fui criado. Quando cheguei à universidade ainda adolescente, o encantamento foi ainda maior, o que culminou com minha participação do Diretório Acadêmico (DA) na universidade como diretor de políticas estudantis. Com esse cargo tive uma experiência que foi essencial para uma série de mudanças em minha vida e que me trouxe à época uma enorme desilusão. Compartilharei convosco tal história:
Após uma reunião onde
acertávamos os detalhes de um congresso de estudantes, eu num arroubo de
inocência questionei junto ao principal organizador se não deveríamos convidar
a juventude do PSDB para tornar os debates mais democráticos e diversificados
me dispondo eu mesmo a confrontá-los se preciso. Num tom que me soou como o de
um deboche o rapaz, já não tão jovem, disse que “com esse povo a gente não debate,
a gente só bate”. Já se vão quase 15 anos e essa frase continua viva em minha
memória, afinal abalava as minhas convicções de que num debate político as
vozes discordantes deveriam ser ouvidas, além de ter sido um verdadeiro soco na
boca do meu estômago idealista e ingênuo.
A partir dali comecei a me afastar pouco a pouco de tais movimentos e a questionar profundamente as minhas posições políticas, o que me levou a uma reorientação dos meus valores e princípios. E é a partir dessa experiência de vida que gostaria de analisar um polêmico fenômeno contemporâneo: o cancelamento.
Tal fenômeno tem sido tão
comum e intenso que gerou o termo “cultura do cancelamento”, que consiste em
linhas gerais numa tentativa de apagar as referências, a história, a fama e as
fontes de financiamento de uma pessoa, associação ou empresa que tenham em
algum momento mencionado ou feito algo que de alguma forma pudesse ferir ou
contradizer valores considerados intocáveis para um grupo de agentes virtuais
que avaliam ações dos “cancelados” conforme seus padrões morais e éticos
promovendo uma campanha de anulação não apenas dos atos tidos como racistas,
homofóbicos, machistas, etc., mas das pessoas que supostamente os teriam
praticado.
Observando esse modus operandi de jovens ativistas ou
justiceiros sociais contemporâneos não os posso dissociar do que vivi há quatorze
anos e do que o movimento revolucionário progressista vem fazendo há no mínimo
dois séculos. O que está por trás do cancelamento é a mesma prática da anulação
do verdadeiro diálogo e do contraditório, não há debates ou chance para defesa,
nem sequer se trata de um boicote, já que este se configura por uma campanha de
recusa a uma ação de um indivíduo ou grupo e não a recusa à existência mesma do
indivíduo ou grupo como no caso do cancelamento. O que se pretende, em última
instância, é a anulação ou extermínio do desafeto.
E não nos enganemos, esse é
um fenômeno teleguiado, não é uma iniciativa espaçada de jovens contrariados e
mimados incapazes de utilizar os mecanismos civilizados para confrontar quem em
tese “mereceria ser cancelado”. Esse tipo de ação dirige-se na maior parte das
vezes a quem pronuncia algo tido como “conservador” ou em oposição às pautas
progressistas. E não deixa de ser irônico que grupos abertamente críticos à
moralidade clássica se mostrem tão moralistas e intransigentes, afinal “é
proibido proibir, mas uma proibiçãozinha de vez em quando não faz mal a
ninguém”. Então tal qual o “líder estudantil” que eu havia citado preferem
negar a existência do diferente do que lidar com eles no âmbito público das
ideias.
Se formos analisar mais de
perto o modo como se faz o processo do cancelamento observamos que em quase
tudo se assemelha a um tribunal retirando-se “apenas” a defesa. Há somente
acusação e condenação sucedida por linchamento moral que substitui a execução
penal.
O resultado perceptível
desse moralismo que se constitui em tribunal da história é de um lado a
tentativa de “purificar a história” anulando personagens históricos que
deixaram um escrito ou obra tida como desagradável e de outro a reconstrução do
passado como se isso fosse ontologicamente possível. Distinguindo aqui a massa
de manobra das cabeças pensantes vemos que os primeiros não enxergam o absurdo
do que promovem enquanto os últimos apostam na ignorância dos primeiros para acumularem
cada vez mais poder, pois quem “Quem domina o passado domina o futuro; Quem
domina o presente domina o passado” como indicou Orwell no livro “1984”. Sobra
então, literalmente, para figuras históricas tão diversas como Cristóvão
Colombo e David Hume serem apagados ao invés de serem estudados.
Muito bom, Cleverson! A "revolução" jamais retrocede, torna-se sempre mais acirrada e radical, já estamos no abismo.
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirDe fato o processo revolucionário se acirrou e num aspecto ainda mais terrível do que fora anteriormente quando se direcionava a lutas políticas, pois agora adentrou o íntimo do homem colocando em dúvida sua própria identidade como nas ideologias contemporâneas.
Que Deus se compadeça de nós!